– O senhor está
sentindo o quê, seu Pereira?
– Não sei lhe
explicar direito, Eva. É um mal-estar... Uma sensação estranha, uma vontade de
fugir daqui, como se eu não coubesse dentro de mim.
– Se acalme, seu Pereira.
Não há nada que o senhor possa fazer, não é mesmo? Descanse e tenha paciência!
Daqui a pouco o senhor tem alta e já vai caminhar de novo na praia.
– É...
Seu Pereira tivera
um infarto e fora levado às pressas para o hospital. Começou a se recuperar.
Parecia que logo voltaria para casa. Mas dias depois de conversar com Eva, o
coração parou de vez. Morreu numa manhã ensolarada de fevereiro.
Era um homem
enérgico, cheio de vida, sempre o encontrava caminhando no calçadão da praia de
Boa Viagem. No entanto, eu notara que havia algo errado em seu semblante nos
últimos tempos. Observei também que estava escrevendo menos. Suas
crônicas tinham deixado de ser publicadas semanalmente – agora só de vez em
quando é que seus textos apareciam nos jornais. Não o via mais passeando com o
neto, nem com o filho – depois dona Carmem, a viúva, me contou que ele não ia
mais a festas e havia diminuído o ritmo das visitas aos familiares, como se
estivesse, por algum motivo misterioso, se afastando dos parentes e dos amigos.
Estaria com depressão? Ou será que estava muito ocupado, escrevendo um livro?
Conversador que era, passou a guardar um silêncio perturbador. “Está tudo bem
comigo, Luís Carlos” – garantia-me, quando eu insistia na conversa, tentando descobrir
o que estava lhe acontecendo.
Conheci seu Pereira
no final dos anos setenta, quando a gente fazia licenciatura em Física na
Universidade Católica de Pernambuco. A turma logo no início do curso o apelidou
de vovô. Porque era o mais velho da classe. Naquela época, ele tinha uns trinta
e cinco anos, e a calvície já começava a dar os seus primeiros sinais. Embora
estivesse na área de exatas, Pereira gostava muito de escrever contos. Certa
vez, disse-me que abandonara a escrita porque a esposa, muito ciumenta, fez uma
confusão danada, quando leu uma história amorosa narrada em primeira pessoa.
Lecionou Física durante muitos anos, mas depois de velho, voltou a escrever.
“Não consigo resistir em colocar no papel as histórias que ficam fervilhando em
minha cabeça!”, dizia-me. Eu sempre acompanhava as postagens dele no Facebook,
sobretudo suas crônicas, seus contos e suas opiniões políticas. Foi seu Pereira
quem me incentivou a escrever ficção e que, muito antes desses escândalos
políticos virem à tona, me alertou sobre o projeto de poder da esquerda,
engendrado no Foro de São Paulo. “Você vai ver, Luís Carlos, que essa quadrilha
do PT será desbaratada. Pode esperar! A mentira tem perna curta, um dia a casa
cai!”.
Claro que, depois do
mensalão, eu sabia muito bem que o PT era uma farsa, aliás, acho que todos os
professores sabiam disso, mas a gente votaria na Dilma e incentivava os alunos
a fazerem o mesmo, porque viria mais recursos para a universidade. No fundo no
fundo, minha campanha, digamos assim, era por interesse próprio – precisávamos
das bolsas para as pesquisas, e eu estava querendo fazer pós-doutorado na
Alemanha. Enfim... Hoje, no entanto, principalmente após a notícia do pagamento
de dois milhões e meio ao filho do Lula, por uma consultoria copiada e colada
do Wikipédia, não tenho mais a cara de pau de enganar meus alunos.
Depois de mais ou
menos um mês da morte do meu amigo, dona Carmem me ligou; queria me devolver um
livro que eu emprestara ao Pereira. “Livro? Que livro?”. De fato, fazia bastante
tempo que eu havia lhe emprestado Os Sertões, de Euclides da Cunha.
Encontrei-me com ela na São Braz do Shopping Center Recife, tomamos um café, e
quando o livro finalmente me fora entregue, notei que havia uma folha de papel
entre as páginas do meio. De relance, vi que era um texto com a letra do
falecido. Curioso, não quis chamar a atenção de dona Carmem para o papel. Ela
poderia pedi-lo. Quem sabe? Decidi que faria a leitura daquele bilhete somente
quando estivesse em casa.
Antes de dizer o que
havia no manuscrito, convém a gente refletir um pouco sobre o que possivelmente
acontece depois da morte. Por certo, há muitos mistérios ainda não desvendados
pela ciência. Por exemplo: o cérebro é um receptor da consciência, ou a
consciência é um produto do cérebro? Há indícios científicos de que a
consciência é uma coisa completamente separada do cérebro e que ela continua
mesmo depois da pessoa morrer. Li em algum lugar, não lembro onde, que uma
equipe de pesquisadores monitorou trezentos e quarenta e quatro pacientes em
estado de quase morte, ou seja, quando o coração para de bater e não há
atividade elétrica no cérebro. E, por incrível que pareça, dezoito por cento
desses pacientes tinham algum tipo de memória de quando eles estavam “mortos”,
digamos assim; e doze por cento deles se recordavam de quase tudo.
Outra história
interessante que li sobre o assunto foi a narrada pelo Super-homem. Em seu
livro Ainda Sou Eu, Christopher Reeve conta o que lhe ocorreu
quando teve um choque anafilático ao tomar uma injeção de Sygen:
"Então tive a
experiência mais sinistra de minha vida. Já havia ouvido falar de quase morte e
de experiências fora do corpo, mas nunca dei importância. Jamais dei crédito a
essa história de luz branca, túnel e tudo mais que se diz. No entanto, uma
coisa muito estranha aconteceu comigo. Eu estava fazendo um esforço
desesperado para respirar e, de súbito, desisti de tudo. Lembro-me claramente
de ter pensado ou dito em voz alta: “Desculpem-me, mas preciso ir”. Lembro-me
especificamente dessas palavras. E mais uma vez tive aquela sensação de
impotência, de querer pedir perdão por meu fracasso. Eu me esforcei ao máximo,
mas não consegui.
Então saí de meu
corpo e fiquei pairando no teto. Não havia nenhuma luz branca, mas eu olhava
para baixo e via meu corpo na cama, imóvel, e todo o mundo a meu redor – havia
umas quinze ou vinte pessoas, entre médicos, paramédicos e enfermeiras. O
barulho e a comoção foram diminuindo como se alguém estivesse abaixando o
volume. Eu me via deitado, imóvel, as pessoas correndo em volta de mim com
medidores de pressão arterial, estetoscópios e agulhas.
Houve tumulto porque
usaram o “código”. Tomaram a decisão de aplicar-me uma dose maciça de
epinefrina. Meu coração deu um tranco e fez o pulso disparar a uma velocidade
estarrecedora, talvez 175. Nesse instante, caí do teto e entrei novamente
no corpo. Senti o coração acelerado, o rosto quente, o corpo pulsando como se
todo ele fosse um coração.
O ar estava voltando,
a pressão arterial foi subindo, e a cabeça começou a funcionar. Tornei a
enxergar de uma perspectiva normal, de dentro para fora. Os sons eram
incrivelmente altos, o ambiente, caótico. A epinefrina me fez funcionar
novamente. Eu estava de volta".
Existem diversos
relatos que abordam o tema, mas não vou me alongar demasiadamente. O que foi
dito já basta para refletirmos. Aliás, só vou contar mais um caso, porque este
aconteceu comigo mesmo: certa noite, eu deitara mais cedo, fazia um exercício
de meditação – respirava devagar e relaxava aos poucos cada parte do meu corpo.
Findei adormecendo. Sonhei. Era um tempo antigo, havia um moço loiro em
companhia de uma mulher, a impressão que me vinha é que ele era eu com outra
aparência. Ela chamava-se Elizabeth. Passamos à noite num quarto luxuoso... De
manhã, saímos para passear num bosque, acompanhados de uma moça que trazia
consigo objetos de pintura. Ao chegarmos num alto, vimos uma paisagem
exuberante, com um lago ao fundo. Elizabeth trajava
um vestido branco e longo, enfeitado de fino bordado inglês na manga e no decote. Sentou-se num banco
de pedra, Ficou de perfil, de modo que se
podia apreciar bem a sua face direita. E a moça, antes de começar a pintar-lhe
o retrato, falou: “Senhora Cavendish, ajeite a aba do seu chapéu, por favor!”
Neste momento, despertei, e este nome ficou na minha cabeça. Achei muito
estranho, e anotei o sonho no caderno que sempre deixo na mesinha de
cabeceira. Então, no dia seguinte, tive a ideia de procurar o nome na
internet. Para o meu espanto, Elizabeth Cavendish não só havia existido como
também vi uma pintura (datada de 1785) que correspondia a cena que eu
supostamente presenciara. Meu espírito estivera lá? Seria uma lembrança de uma
vida passada?
Pois bem, como dizia
antes, estava curioso para ler o que havia naquele papel. Ao sair do shopping,
depois do encontro com dona Carmem, o sol tinha um brilho suave; devia ser umas
quatro horas da tarde. Entrei no carro, abri as janelas para refrescar e liguei
o som. Deborah Blando cantava A Maçã, de Raul Seixas. A música, não
sei por que, me fez lembrar de uma namorada dos tempos de juventude. Cinco anos
mais velha do que eu, olhos negros e enigmáticos; o namoro não durou muito, mas
foi intenso. Tempos depois, no início dos anos noventa, caminhando num
parque, eu a vira de longe, com um menininho. Os cabelos claros do garoto
fizeram com que eu me visse na infância... A música terminou e as lembranças se
dissiparam como folhas levadas ao vento. O sinal fechou, olhei para os
pedestres que atravessavam na faixa – uma mulher de saia azul, com os seios
enormes; um velho de óculos e um casal de adolescentes. O sinal abriu, e o
bilhete do Pereira me veio de novo ao pensamento...
Assim que
entrei em casa, peguei um copo d´água, sentei na poltrona da varanda e fui
matar a minha curiosidade. Li e reli o texto vagarosamente. Fiquei
impressionado com o que ali estava escrito. A pequena carta que o Pereira
escrevera naquele papel parece-me que reforçava a tese de que a consciência é
mesmo separada do cérebro. Eis o que havia no manuscrito:
"Jacinto, estou
voltando agora do médico. Após o check-up anual, era para eu estar alegre,
porque o doutor me dissera que os resultados dos exames estavam excelentes. Aos
setenta e dois anos, de fato, não posso me queixar da minha saúde. Excetuando,
é claro, as sequelas decorrentes da cirurgia feita no ano passado para a
retirada da próstata. Confesso-lhe que essa operação me afetou bastante, porque
o sexo me revigorava, e o prazer que a mulher proporciona ao homem é que lhe dá
a alegria de viver. Sem esse prazer, a vida perde muito do brilho que tem. Não
bastasse isso, a cada dia que passa, me vejo mais sem perspectiva; o
mundo me parece pior do que antes, é só violência, corrupção, intolerância,
está difícil de viver bem. Sinto um vazio dentro de mim, uma falta de
esperança, não vejo mais graça nas coisas, os dias são monótonos, uma
melancolia me domina. Os meus netos cresceram e não me dão mais atenção. A vida
na Terra não faz nenhum sentido; minha rotina consistia em fazer as coisas de
que mais gostava, um eterno retorno, por assim dizer. Mas agora tudo está na
lembrança, e os momentos felizes só acontecem em sonhos. Enfim, tenho a
impressão de que minha alma deseja se libertar; no entanto, o meu corpo
saudável não a deixa vagar livremente pelo espaço. É uma sensação estranha,
muito estranha. Tenho medo! É como se eu tomasse consciência de que o meu corpo
fosse apenas a prisão da minha alma, esta, sim, a verdadeira essência do meu
ser.
Neste momento, sinto
um desânimo, como se minha chama estivesse se apagando... Até quando o meu
corpo segurará essa alma ávida de liberdade?"
Poucos dias depois,
teve o enfarto fatal. Teria havido uma premonição? O destino já estaria
traçado? E o tal Jacinto? Procurei, em vão, descobrir quem era esse sujeito.
Mas ele simplesmente não existia. Ninguém sabia quem era. Seria algum
personagem? Meu Deus! Quantos mistérios indecifráveis!
As palavras do
Pereira, de certo modo, me trouxeram um alento e convergem para ideia de que a
consciência resiste à morte do cérebro. Elas até nos fazem crer na imortalidade
da alma. Mas esse desejo do vivente talvez não passe de mera ilusão, e, depois
da morte, nos transformemos em pó e nada mais.
Enfim, apenas agora,
após muito refletir, é que pude compreender um pouco o motivo daquele silêncio
e daquele olhar triste vindo sei lá de onde... Talvez o Pereira estivesse
deprimido. Quem sabe? Não pude ajudá-lo. Não pude evitar que meu amigo
partisse.
E isso tudo me fez
lembrar as rubaiatas, de Omar Khaiame. E, como bolhas numa chaleira aquecida,
os seguintes versos surgiram em minha mente:
A morte,
separação da alma do
corpo,
é necessária e fatal.
Não é isso que me
preocupa!
O que receio,
depois da morte,
é o remorso
de não ter vivido
plenamente feliz.
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