quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

MEMÓRIAS DE ITABAIANA POR MELCHIADES MONTENEGRO

Alameda na antiga Praça da Indústria onde existiu a Capela de Santo Antonio, construída, em 1923, por Firmino Rodrigues de Souza.



Itabaiana, Terra Materna
                                                                                 

  Morada das almas

No dia 14 de fevereiro desse ano, recebi uma mensagem do meu primo Robinson Viana, comunicando o falecimento de uma pessoa muito querida, Ivanise de Souza Souto, minha prima, nascida e criada em Itabaiana. Não foi nenhuma tragédia, sua enfermidade vinha de longa data. Pela grande amizade que sempre nos uniu, imediatamente telefonei para um taxista amigo e segui para aquela cidade, onde estava sendo realizado o velório e iria ocorrer o sepultamento.

Surpreendi-me com o burburinho dos transeuntes e o número de veículos no centro, que conhecera tão modorrento. Fazia muitos anos que visitara Itabaiana; a mudança era evidente. Um pouco depois das dezessete horas seguimos de carro, vagarosamente para o cemitério, e ao passarmos pelo belo coreto o movimento do trânsito diminuiu e me dei conta do início de um por do sol, que no Recife não ocorre nem parecido, ou se tem ninguém consegue ver.

Com aquela luz dourada e enviesada de fim de tarde cortando a poeira suspensa no ar, entrei no cemitério e curiosamente li algumas das placas indicativas nos túmulos. Passaram a desfilar diante de mim, os antigos personagens da minha origem materna.

A curiosidade cedeu lugar ao êxtase. Não mais lia as placas ao acaso, agora procurava o local de descanso dos parentes de quem me recordava. De mãos entrelaçadas com a saudade passeei com meus ancestrais sob um céu vermelho e o ziziar de cigarras. Foi um presente de despedida de minha querida prima Ivanise: o encontro com minhas raízes maternas.

Dias depois desse fato, meu amigo e confrade Ricardo Bezerra, me convidou para proferir uma palestra na comemoração do 10º aniversário da ALANE – Paraíba. Respondi que sim e o tema seria Itabaiana, Terra Materna, ainda que não tivesse escrito nem uma linha dele.

Procurei então me informar melhor sobre o que iria falar. Encontrei no excelente livro de Sabiniano Maia, “ITABAIANA – Sua História – Suas Memórias”, na página 50, uma revelação que me arrepiou os cabelos: “Dentre as muitas interpretações dadas ao vocabulário Itabaiana, há a do Dr. Teodoro Sampaio... diz ser aquele vocábulo tupi corrompido, composto de tapa-yan ou tabaanga, a morada das almas... Por volta de 1890, no local onde... se realizava a feira de gado, no Alto dos Currais, encontraram-se ossadas humanas postas em jarras.” Local de um antiquíssimo cemitério indígena, muito anterior ao povoamento colonial.

 Local de morada das almas dos índios nos primórdios de sua ocupação humana, e de igual maneira a morada das almas dos meus ancestrais que habitavam o cemitério, comungando com meu espírito naquele entardecer de 14 de fevereiro.

O livro de Sabiniano Maia, ainda traria uma surpresa maior. Na página 320, tirada do livro de Joaquim Inojosa, “Diário de um Estudante”, uma fotografia com a legenda – “Moças de Itabaiana, aguardam sentadas num dos bancos do coreto da Praça Álvaro Machado, a chegada da música para a retreta do domingo.” Nela, estava minha mãe, Edelvina Rodrigues de Araújo. São cinco jovens retratadas, três consegui identificar, da esquerda para a direita: Noêmia Araújo (filha de Tia Mocinha, neta de Vovó), uma não identificada, Luiza Braga, Mamãe e outra não identificada. O passado chegava sorrateiro às minhas mãos.

                                           Lembranças

Toda história que nossa mãe nos conta parece especial. Então, quando ela recorda fatos da infância, adolescência, mocidade, namoros, lugares, passeios, personalidades, família, acontecimentos marcantes ou banais, tendo como cenário uma pequena cidade, esta será para sempre uma referência emotiva que nos transportará para os braços maternos.

 Itabaiana, cidade de minha mãe.

Açude salgado, triângulo (da estrada de ferro), bonde de burros, Guarita (lugar de mulher malcriada e das pernas finas, opinião materna), Salgado de São Félix, Praça da Indústria, Festa de Nossa Senhora da Conceição, Café do Vento, Mãe Doninha, Nen, Pilar, Tio Pedro, Mariinha, Alfenins, Papiu, Madrinha Sinhá, Capela de Santo Antônio, Madrinha Marica, Sivuca, Baninho, Luiz Rodrigues, Pedrinho, Valéria, Curtume, Puxa-puxa, Água Rabelo, Rio Paraíba, Maracaípe, Ivanise, Ida, Isa, Tia Tutu, Tia Isaltina, carne de sol, banho de cuia; Tudo isto num amálgama com o nome de : Itabaiana.

Esta cidade de médio porte, situada na região Semiárida do Estado da Paraíba, viveu até bem pouco em decadência, mas em fins do século XIX e início do século XX, teve um grande desenvolvimento comercial, industrial e cultural que aos pouco retorna nos dias de hoje.

            Quase equidistante do Recife, Campina Grande e da Capital do Estado e, sendo ligada a estas por via férrea e rodoviária, já no final do século passado, tornou-se entreposto comercial de grande porte. Além de  que desenvolveu várias indústrias de beneficiamento do couro voltadas para o mercado nacional e internacional.

Com o desenvolvimento vieram as consequências sociais e culturais; jornais próprios, transporte coletivo urbano (bonde de burros), vários grêmios literários, retretas na praça da Conceição (que ainda guarda o mais belo coreto da Paraíba, quiçá do Brasil. Importado da Bélgica?), escolas públicas e particulares e uma sociedade que promovia festas e reuniões periódicas pelos mais variados motivos. No final do ano, a festa da Conceição atraía visitantes de todas as cidades vizinhas, da capital, de Campina Grande e do Recife.

No dia 2 de setembro de 1945, enquanto do outro lado do mundo, o último reduto do Eixo, o Império do Japão, rendia-se incondicionalmente aos Aliados comandados pelas Forças Armadas Norte Americanas, no convés do Encouraçado Missouri ancorado na baia de Tóquio, eu completei meus três anos com uma festa em Itabaiana. Não completou um ano o tempo em que lá residi. Brinquei de roda na praça, ouvi histórias de trancoso e conheci meus parentes maternos que me acompanharam por toda vida.

Minha avó, Alexandrina Belarmina da Conceição Rodrigues de Araújo, mas para nós, simplesmente Mãe Doninha, morava longe do centro da cidade, perto do triângulo da estrada de ferro. Na frente da casa, ela mantinha uma mercearia a que nós, netos, chamávamos a "Venda de Mãe Doninha", além disto, fazia um doce chamado "alfenim" feito de mel grosso e quente batido por duas pessoas cujas mãos têm de ficar polvilhadas sempre de araruta ou Maizena para o mel não grudar. É minha mais gostosa lembrança da infância: comer alfenim.

 Foi em Itabaiana que minhas memórias deixaram de ser fragmentadas, passando a ter um sentido de continuidade. Lembro-me bem das brincadeiras na praça em frente de nossa casa tão ao gosto dos anos quarenta do século XX, brincar de roda com as cantigas próprias que hoje só encontramos nos livros ou nas manifestações de grupos folclóricos  (fui no Tororó, no meu jardim tinha uma roseira, o cravo brigou com a rosa, ciranda cirandinha  e muitas outras mais).

De todas as brincadeiras e cantigas infantis, Itabaiana tinha ou ainda tem uma que é peculiar e que não vi ou ouvi em nenhum outro lugar. Fazia-se uma roda de mãos dadas com meninos e meninas e sempre girando no mesmo sentido, cantava-se a seguinte canção:

"No salão dancei
mata pila, pila pila,
no salão dancei
mata pila pila pila,

Mademoiselle (dizia-se o nome de uma das meninas presentes)

Nesse momento a menina nomeada largava a roda, caminhava para o meio e dançava cumprimentando a todos que cantavam a melodia com o seu nome e depois retornava para a roda.
Monsieur (dizia-se o nome de um dos meninos presentes)

Mata pila, pila pila,
No salão dancei
Mata pila, pila, pila,

E assim continuava até que todos fossem chamados. Ignoro a origem dessa brincadeira, mas, pela utilização de vocábulos franceses, talvez esteja aí  a chave para quem for pesquisar.
Itabaiana tem um clima seco, está situada na Zona do Agreste Paraibano, à margem direita do Rio Paraíba do Norte.

Mamãe nos contava muitas histórias tendo o rio como tema, uma das que eu mais gostava era a de que quando menina tomava muitos banhos nele e brincava de catar pedrinhas redondas para "jogar com pedra" encontrando então uma bem pretinha com uma pepita de ouro encravada. Daí nossa imaginação corria solta na vontade de ir até Itabaiana procurar mais pedrinhas daquelas, pois onde ela encontrou uma, deveriam existir outras. Mamãe ajudava na fantasia descrevendo em detalhes a forma da pedra e o brilho do ouro.

Existe um episódio envolvendo um "jacaré-açu" que foi colocado no açude Salgado no final do século XIX, dentro das terras do Curtume Santo Antônio, pertencente a Papiu, Firmino Rodrigues de Souza, também conhecido como Firmino de Cotinha e meu materno avô, José Paulo de Araújo.
O caso é que alguém vindo da Amazônia trouxe de presente para Papiu e Vovô dois filhotes de jacaré-açu, e eles os colocaram no dito açude. Depois esqueceram por completo da sua existência. Um deles morreu, mas o outro cresceu e muito, superando largamente o tamanho dos jacarés que existiam por aquelas bandas.

Começou assim a correr o falatório do povo e, como quem conta um conto aumenta um ponto, a fama e a envergadura do jacaré do açude salgado foi largamente ampliada.

Papiu era um homem de muitas posses e, consequentemente, muito bem relacionado. Recebia fidalgamente o melhor da sociedade de Pernambuco e da Paraíba. Assim, como por contingência dos negócios de exportação de couro, muitos estrangeiros, principalmente ingleses, alemães e americanos. O certo é que num dia de visitantes ilustres, todos  vestidos como mandava a moda do início do século XX, de casaca e cartola, resolveram antes do almoço, darem um passeio de bote no açude salgado que, por ser inverno, estava parecendo um lago, e no meio de risadas e galhofas remaram até o meio do açude.

 O anfitrião, por pura gabola e sem medir as consequências, contou as histórias e a fama do jacaré, habitante daquelas águas, possivelmente aumentando-as um pouco.  O pânico tomou conta dos navegantes. Olhavam desconfiados para a água e qualquer coisa que vissem boiando, imaginavam logo ser o réptil. Alguém, vendo um resto de uma cabaça velha se mexendo ao sabor do vento, pensou que fosse o animal e gritou.

-Lá vem o jacaré!

Foi o bastante para que todos se levantassem de uma só vez, fazendo o que era de se esperar; o barco virou e os ocupantes de fraque e cartola caíram na água e começaram a nadar freneticamente. Todos chegaram à margem gritando, encharcados, enlameados, as cartolas perdidas boiando ao léu e do jacaré nem o cheiro.

Ele ainda viveu muitos anos só assustando, mas sem molestar ninguém. Quando rareavam as aves aquáticas do açude, caçava as galinhas, perus e guinés que aparecessem para ciscar no seu território. Mamãe acreditava que saiu do açude em 1924 quando de uma grande cheia do Rio Paraíba, que inundou meio mundo em volta da cidade.

                                           Epílogo
Minha família materna chegou oficialmente a Itabaiana pelo que “Reza a sesmaria nº 793, de 23 de fevereiro de 1781:

Capitão Joaquim Dias de Andrade, Tenente Manoel da Cunha de Oliveira e José Rodrigues de Araújo, dizem que descobriram terras devolutas nas margens do Rio Parayba, principiando nas extremas das datas dos Andrades, do nascente ao poente, até o logar do Areal, e pedem por sesmaria...”

Um século depois, a neta do sesmeiro José Rodrigues de Araújo, um dos povoadores de Itabaiana, Teodora Rodrigues de Souza (por nós chamada de Mãe Cotinha), nascida em 1831, minha bisavó, utilizando o método primitivo de utilização do tanino da casca do angico para curtir o couro, fundou o Curtume Santo Antônio em Itabaiana. Graças ao espírito empreendedor do seu filho Firmino Rodrigues de Souza, esta indústria prosperou, colocando a cidade no rol dos polos exportadores de bens manufaturados do Brasil.

 Com a derrocada da Bolsa na crise mundial de 1929, as exportações paralisaram e nunca mais se recuperaram. O comércio sofreu as consequências e passou a sobreviver do varejo só tendo certa animação nas terças-feiras, dia da feira.

Mais uma vez cito Joaquim Inojosa, e o seu livro “Diário de um Estudante”, quando descreve um piquenique realizado em 1921, organizado por meu pai e seu irmão, no Engenho Jurema, no município de Itambé: Papai iniciou a corte a minha mãe nesta festa.

“ Realizou-se, hoje, um grande piquenique a duas léguas da cidade. Saímos, cerca de 90 cavaleiros e mais cinco carros puchados a bois, três carroças e um automóvel, às 8 horas, chegando ao ponto às 10 ½ da manhã. Esperavam-nos os donos da casa... com lauta mesa. Ao lado, grande latada sob frondosa árvore, onde dançamos a vontade...Voltamos todos juntos, chegando à noite. A música orquestrava à frente e o povo dava viva ao... próprio povo.”

O senhor Odilon Maroja, prefeito da cidade, na segunda década do século XX, para efeito de ampliar a Praça Álvaro Machado, determinou a demolição da primitiva Capela de Santo Antônio em 1918, construída nos alvores do povoamento de Itabaiana. Meu tio avô Papiu, devoto de Santo Antônio, procurou reparar o erro do edil, seu amigo, construindo em 1923, as suas custas, uma nova Capela de Santo Antônio, na Praça da Industria. O casamento de meus pais Melchiades de Albuquerque Montenegro e minha mãe Edelvina Rodrigues de Araújo se realizou nessa capela, em 30 de outubro de 1924.

Através da herança materna, corre no meu sangue o gene do sesmeiro José Rodrigues de Araújo um dos povoadores primitivos de Itabaiana e no fim da tarde de 14 de fevereiro de 2014 ele e todos os demais parentes caminharam junto a mim nas alamedas do cemitério, no sepultamento de minha prima itabaianense Ivanise, fazendo reviver o verdadeiro nome da cidade de minha mãe, tapa-yan, morada das almas.

Itabaiana, Terra Materna, onde caminhei sob a luz dourada de um sol poente de mãos dadas com minha ancestralidade.


Bibliografia:
Itabaiana-Sua História-Suas Memórias. Sabiniano Maia – João Pessoa/PB 1976
Diário de um Estudante – Joaquim Inojosa – Rio de Janeiro/RJ 1959
Memórias Seletivas-Infância – Melchiades Montenegro – Recife/PE 2002

Melchiades Montenegro Filho . 


Sobrinho neto de Firmino Rodrigues de Souza (Firmino Cotinha), o autor é historiador, escritor, poeta, artista plástico, membro da Academia de Artes e Letras de Pernambuco-AALPE, da Academia de Letras e Artes do Nordeste Brasileiro-ALANE, da União Brasileira de Escritores-UBE, da Academia de Letras, Artes e Ciências de Olinda-AALCO.


Um comentário:

  1. Consistente relato. Fidalga origem. Meus cumprimentos para o nobre amigo Melchiades Motenegro

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