quarta-feira, 17 de julho de 2013

UM CONTO: "A PRIMEIRA VEZ " - POR EDNALDO BEZERRA

Mulata  da coleção Di Cavalcanti

Tio Jairo, fumante inveterado, saiu do Crato, ainda rapazote, para morar em Barbacena, passou três anos por lá e depois foi para o interior de São Paulo. Ia ser aviador, mas numa aula de voo, acendeu um cigarro perto do avião e terminou sendo desligado da Academia da Força Aérea.
Decidiu, então, vir morar sozinho em Recife, para estudar Direito. Queria ser advogado. Começou a trabalhar num escritório e alugou um apartamento; na verdade um quarto e sala, na Rua da Aurora, perto do Parque Treze de Maio.
Eu tinha uns quinze ou dezesseis anos, quando ele veio para o Recife, e adorava visitá-lo, porque o apartamento ficava num andar bem alto e a vista da cidade era belíssima. Da janela podiam-se contemplar as pontes do rio Capibaribe, o Recife Antigo e o vasto mar azul; na estante da sala, feita em madeira escura, também havia muitos livros interessantes que ficavam ao meu inteiro dispor.
Geralmente, eu o visitava no sábado uma vez que, durante a semana, ele só chegava à noite, depois das aulas na Faculdade de Direito. Mas eu sempre arrumava um pretexto para ir ao seu apartamento, nas terças-feiras, quando uma moça ia fazer a faxina semanal. Aí, pegava um livro e ficava lendo por um bom tempo, ou pelo menos, fingindo que estava lendo.
Tio Jairo sempre fora muito mulherengo, de forma que ele selecionava as empregadas, levando em conta a aparência das moças. Antes de contratá-las, fazia uma entrevista e mostrava-lhes todos os afazeres da casa.
No primeiro dia de trabalho da arrumadeira, ele entregava-lhe o uniforme que deveria ser usado durante as tarefas domésticas. O fardamento consistia num vestido azul-claro, um lenço branco para os cabelos e sandálias de borracha, tipo Havaianas. O engraçado é que o vestido cabia certinho em qualquer uma.
Quando eu estava lá, as moças sempre se portavam muito bem e tinham o maior cuidado ao se abaixarem, porquanto o vestido era curto demais. No entanto, teve uma, a Juçara, que não estava nem aí; propositalmente, se abaixava, ou subia na escada para limpar as luminárias, deixando-se mostrar, sem nenhum constrangimento.
Juçara era uma mulata escultural, tinha uns vinte anos, o olhar penetrante e sedutor combinava com a beleza de sua face, chamava a atenção pelas belas pernas e pelo rebolado faceiro ao andar. As semanas se passavam, e eu notava que ela se exibia cada vez mais, deixando-me inibido e com o coração acelerado. Na adolescência, os hormônios estão à flor da pele, de maneira que a visão de uma mulher bonita me estremecia; portanto ser acometido de tais palpitações era uma reação bastante natural.
Dessa forma, todas as terças-feiras eu saía do Edifício San Rafael, onde fazia um curso, ansioso para vê-la. Partia a passos largos, da Avenida Dantas Barreto até a Lanchonete Cascatinha, na Rua Sete de Setembro; tomava um caldo de cana, acompanhado de dois cachorros-quentes e me dirigia para o apartamento de tio Jairo.
Certa vez, eu estava deitado no sofá, sem sapatos, fazendo de conta que lia “O Menino de Engenho”, quando, de repente, Juçara me chamou para segurar a escada, enquanto limpava a parte de cima da estante.  Não pude acreditar, pensei que estivesse vendo miragem, a danada estava sem nada por baixo. Aí não teve jeito, tive que deixar de ser donzelo e abandonar o sonho de me guardar casto para a mulher amada. 
Fazia calor, o sol brilhava no céu com poucas nuvens. Saí do apartamento me sentindo leve e com uma fome de leão, atravessei a ponte Duarte Coelho, entrei na Rua do Sol e fui beirando o Capibaribe; estava soprando um vento refrescante, pequenas marolas se formavam nas águas do rio, um pescador recolhia as redes na embarcação; por fim, cheguei à Rua Ulhoa Cintra e entrei no Galeto de Ouro. Havia uma fragrância de assado no ar que aguçou ainda mais o meu apetite, pedi uma bisteca na brasa, com feijão verde, arroz, farofa e vinagrete, em pouco tempo não havia nenhum vestígio da comida. Galego, o garçom, aproximou-se e foi me dizendo: “Rodrigo, você estava faminto hoje, hein? Seus amigos vieram aqui bem mais cedo...”. 

Vez por outra, eu almoçava ali com a turma do curso, de forma que ele já me conhecia.  Olhei para o relógio, passava das treze horas, e o expediente havia começado; mesmo caminhando apressadamente, cheguei bastante atrasado ao trabalho. Inventei uma desculpa para o chefe; ele olhou para os meus cabelos ainda molhados, minha cara de sono, sorriu e me disse: “Tudo bem, dessa vez passa.”. Respirei aliviado.
Encontrava-me com a Juçara todas as terças-feiras, ansiava para que a semana passasse rápido, a fim de poder revê-la. Somente em uma oportunidade, nos encontramos num sábado, na Rua do Riachuelo, quando eu saíra do Colégio depois da prova de Física, e, então, fomos assistir a um filme no Cinema Moderno. Contudo o nosso romance durou pouco; após cerca de quatro meses, ela foi visitar a mãe, em Ibicaraí, na Bahia, e não voltou mais. 
    
A vida é interessante: pessoas, com as quais nos relacionamos tão intensamente, caem no esquecimento, até as imagens se desvanecem, por mais que tentemos nos lembrar de suas fisionomias. Mas esquecer é benéfico e fundamental para o equilíbrio do homem, já dizia Nietzsche. Porém, todos os acontecimentos permanecem registrados na memória e, às vezes, de modo inesperado, algo nos faz lembrar dos momentos vividos num passado longínquo, então vemos tudo nitidamente; depois a visão torna a se turvar, e esquecemos. Foi o que me aconteceu...
Eu viajava de carro, do Rio de Janeiro para Recife, com a minha família; não gosto de almoçar quando estou dirigindo na estrada, prefiro comer banana, chocolate, maçã e tomar água; no entanto, meu filho e minha esposa, com fome, insistiram para que parássemos em algum restaurante. Falei para eles que estávamos bem próximos a Itabuna, e que almoçaríamos por lá. Ao chegarmos à cidade, avistei uma churrascaria elegante, pensei em procurar outro lugar, pois ali a refeição deveria ser muito dispendiosa; todavia, para não perder mais tempo, decidi que ficaríamos naquele restaurante mesmo.
Pedimos filé, com arroz e fritas, e uma jarra de suco de laranja com acerola. Enquanto a comida não chegava, observei uma senhora mulata, vistosa, que orientava a mocinha do caixa; ela devia ter em torno de cinquenta anos de idade, muito requintada, exibia uma beleza incomum, realçada pelos cabelos crespos bem penteados; ao olhá-la mais detidamente, achei-a familiar. De onde eu a conhecia?  De repente, quando ela olhou em minha direção, veio-me a lembrança... Era a Juçara. Havia passado quase trinta anos, mas apesar de envelhecida, possuía o mesmo olhar penetrante, e o corpo esbelto.
 Terminamos de almoçar, e o garçom trouxe-nos a conta; minha mulher perguntou-lhe: “Quem é aquela senhora de azul?”, ele lhe respondeu: “Aquela ali é esposa do dono da churrascaria, a dona Juçara.” Estava confirmado. Não pude deixar de ficar feliz, pois o destino havia sido generoso com ela, da mesma forma como fora comigo. Parecia bastante satisfeita com a vida que levava. Evoluíra, era outra pessoa.
Depois de uns quinze minutos que estávamos na estrada, minha esposa falou: “Rodrigo, percebi que aquela senhora do restaurante olhou para você algumas vezes, e de uma forma estranha; você a conhecia?” Fiquei calado, como se não tivesse entendido bem a pergunta; porém, em virtude do orgulho e da vaidade que habitam a alma masculina, não pude deixar de sentir um quê de satisfação nas palavras de minha mulher. Afinal, Juçara ainda se lembrava de mim. 



Prezado Carlos Ferraz,

Primeiramente, gostaria de lhe agradecer as publicações das minhas crônicas, em especial, as ilustrações feitas, todas muito boas e criativas. Agora, estou-lhe enviando um pequeno conto que tive o prazer de vê-lo entre os premiados do 9º Concurso de Contos Luís Jardim (Recife-PE).
Se for possível a publicação, para que os amigos de Triunfo e Serra que acessam o seu blog com frequência o leiam. Agradeço-lhe.
 
Um grande abraço,
 Ednaldo Bezerra
         
Ednaldo Bezerra é um escritor pernambucano, cronista, membro do Grupo Literário Boaprosa,  premiado, em 2011,  no 9º Concurso Literário Luís Jardim, com o conto “A Primeira Vez”. Depois de lançar “Maquiavel na Caserna – A Saga de um Capitão”, agora ele nos traz “Órion”, uma novela que aborda a vida cotidiana – a amizade, o amor, a paixão, a cumplicidade –, e como não poderia deixar de ser, a narrativa é recheada de lembranças e reflexões dos personagens. 

4 comentários:

  1. Tenho acompanhado os escritos do senhor Ednaldo Bezerra e gostado bastante, sem saber porém de quem se trata. Parabenizo ao autor.

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  2. Ednaldo, o seu Conto é uma crônica bem autêntica de uma época que todos nós vivenciamos. A sua "Juçara" viveu em muitos outros corações e tem as características do quadro acima do Di Cavalcanti, linda. Parabéns e que traga mais Contos para participarmos de historias bem contadas.

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  3. EDMILSON GOMES DE SOUZA17 de julho de 2013 às 21:55

    FINALMENTE O AUTOR DESCONHECIDO APARECEU E FOI IDENTIFICADO. PARABÉNS!!

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  4. Parabéns pelo belo conto.Isto sim, vale a pena ser lido, histórias do dia-a-dia, contadas de maneira leve e interessante.

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