sábado, 26 de novembro de 2016

DOM CASMURRO É CULPADO? (OU O JULGAMENTO DE CAPITU) - POR EDNALDO BEZERRA

– Vocês não perceberam? Bentinho era doente. Um bom psicólogo, ao ler o livro, logo chegaria a essa conclusão. Além disso, era mulherengo. Tem uma cena, por exemplo, em que o personagem vê uma senhora caindo na rua. Depois deseja que todas as mulheres caiam para vê-las. Imagina os joelhos arranhados, as meias esticadas e as ligas justas, ou então as pernas sem tais ornamentos femininos. À noite, sonha com as mulheres, talvez até as visse nuas...
Os alunos discutiam em sala de aula tentando desvendar o enigma que envolve o livro de Machado de Assis – Capitu traiu ou não? A maioria achava que sim. Uns poucos tinham visões diferentes. Dois alunos vieram com uma ideia absurda: “Professor, Bentinho e Escobar eram homossexuais, tinham um caso secreto”.

– Pessoal, essa hipótese podemos descartar. No livro não há nenhuma menção a isso. Pelo contrário, nas entrelinhas, fica claro que ambos gostavam de mulher. Dom Casmurro foi publicado em 1899, e somente nesses últimos anos é que se aventou essa possibilidade esdrúxula. Certamente ela surgiu em virtude de, na atualidade, com a desculpa de se evitar o preconceito, se fazer uma certa apologia à homossexualidade. Mas, como vocês dizem, deixemos de viajar na maionese, e vamos aos fatos...

– Tem razão, professor! – disse a menina de óculos da segunda fileira – Capitu é inocente, a gente conhece a história contada apenas pelo velho Dom Casmurro. E qual seria a versão de Capitu? Além disso, ele próprio diz que não tem boa memória, que ela é comparável a alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem nomes, e somente raras circunstâncias.  Há também um trecho em que o narrador fala que pode haver exageração no relato, porque o discurso humano é assim mesmo, um composto de partes excessivas e partes diminutas, que se compensam, se ajustando.

Samanta, uma outra aluna, lembrou  que Escobar era dotado de uma boa formação moral, o próprio Bentinho admirava as virtudes e qualidades do amigo. Inclusive, tem uma cena em que Escobar manifesta a possibilidade (quase que um desejo) de que a sua filha se case com o filho de Bentinho. Portanto, Ezequiel não poderia ser filho de Escobar; afinal de contas, desejar o casamento de irmãos não seria compatível com o jeito de ser do personagem. Bento Santiago tinha um ciúme doentio. Era um psicopata, professor!

Sorri, e, para apimentar ainda mais a discussão, meio que concordei com ela, acrescentando:
    – Vocês se lembram de que, num certo sábado, Bentinho e Sancha trocam olhares desejosos, e, na despedida, as mãos deles se tocam, um aperto carinhoso e demorado, como se o prazer estivesse na ponta dos dedos. Sem perceber, Bentinho confessa, ao pronunciar a palavra “invencível”, que não conseguirá dominar aquela atração amorosa que estava sentindo pela esposa do amigo. Em seguida, o narrador, disfarçadamente, como se o assunto pudesse aborrecer a leitora e fazê-la desistir do livro, diz apenas: “Não faça isso, querida, eu mudo de rumo”. Ou seja, claro que, se Bentinho e Sancha tiveram alguma coisa, isso não será contado. O que quero dizer, meus jovens, é que Samanta, a meu ver, tem uma certa razão. Bentinho via Capitu como a ele próprio – um espelho. Ele tinha malícia, e é quem pode ter cometido o adultério. Supondo que tenha cometido; muito tempo depois o velho Dom Casmurro, sentado à escrivania com a pena na mão, imaginava que Capitu e Escobar tivessem feito o mesmo. Escrevia com o peso na consciência, tentando justificar a si próprio os seus atos maldosos. Talvez, com remorso, sobretudo depois da morte de Ezequiel; ele quer acreditar que foi uma vítima da traição de Capitu e de Escobar. No fundo do coração, tem a dúvida, mas sabe que a semelhança de Ezequiel com Escobar pode ser fruto de sua imaginação, ele vê apenas as semelhanças que há entre os seres humanos – o branco dos olhos é igual, a mão tem cinco dedos, o cabelo é da mesma cor... – Talvez, fique atormentado ao lembrar do Gurgel, o pai de Sancha, voltando-se para a parede da sala, onde pendia um retrato de sua mulher, perguntando-lhe se Capitu era parecida com o retrato. E o Gurgel dizendo que todo mundo achava as duas bastante parecidas, e que na vida há dessas semelhanças assim esquisitas. Aliás, o narrador não está muito seguro da semelhança de Ezequiel com Escobar, porque, quando o rapaz retorna da Suíça, Dom Casmurro diz: “Se fosse vivo José Dias, acharia nele  a minha própria pessoa”. Isso reforça a tese de que ele não tinha certeza de nada. Por isso escreve. Escreve para desabafar, para tentar se convencer do improvável...

– Brilhante! – seguiram-se palmas.

Depois dessa discussão toda, fizemos o julgamento simbólico. A posição inicial inverteu-se. Pouco mais da metade achava que Capitu era inocente. Foram vinte e cinco votos  a favor da absolvição e dezenove, contra.
                                          

Ednaldo Bezerra é escritor 

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